Monday 23 June 2014

No Jugular: "Notícias, declarações e deliberações de inversão de marcha"

Escrevi ontem um texto no auge da minha indignação com o conteúdo de tanta notícia e documento em relação à Medicina Geral e Familiar e aos Cuidados de Saúde Primários em Portugal. Seja ignorância, seja ignomínia, o facto é que se dá a entender uma visão inaceitável de retrocesso ou destruição. A Ana Matos Pires decidiu partilhá-lo no Jugular.
Deixo aqui uma parte, se estiverem interessados sigam a ligação acima.

«Num momento em que os médicos de família estão a ser atacados em várias frentes (algo que se pode dizer de demasiadas profissões em Portugal hoje em dia), com a obrigação de seguir listas de 1900 utentes que são cada vez mais utilizadores do SNS dada a crise económica, com todo o trabalho administrativo e organizativo que o modelo de USF impõe, com os problemas informáticos e com a intenção de os obrigar a colmatar falhas que o governo criou ou não soube ou quis resolver, como as consultas urgentes e a medicina do trabalho, é importante que não só os médicos como os portugueses tenham consciência do que se passa e o combatam tanto quanto possível. Não podemos ser “tigres de papel” nem tão pouco obedecer a “leis da rolha”.»

In Memoriam

Porque a memória é muito importante e porque continuamos a beneficiar do legado daqueles que nos deixaram, fica aqui a lembrança de um texto de Miguel Gaspar, director adjunto do Público, que faleceu ontem de madrugada.


A esquerda, a direita e Vladimir Putin


"(...) O mais grave nesta argumentação é a ideia de que se os americanos um dia invadiram, então os outros têm direito a fazer o mesmo. O primarismo desta abordagem toca as raias do absurdo. Uma mesma pulsão quase salazarista parece habitar estas visões da crise ucraniana. A hipocrisia e o moralismo de vão de escada fazem a ponte entre perspectivas ideológicas diferentes, que têm em comum a aceitação passiva destes acontecimentos, ignorando a ameaça gravíssima que eles representam para a Europa e para a segurança global.

(...) Olha-se para a Ucrânia como se fosse um país artificial, dividido em dois e com um fraco sentimento de identidade nacional. Mas as identidades nacionais são construções. Embora esteja muito longe de ser uma democracia exemplar, a bipolaridade cultural da Ucrânia permite-lhe ser um país mais aberto do que a Rússia.

(...) Precisamos hoje de um realismo progressista e não do cinismo conformista e ressentido dos que ficaram parados na história e acham, por isso, que a história parou."

Sunday 15 June 2014

Reforma dos CSP - ponto para análise

Há muito a dizer de bom sobre a reforma dos cuidados de saúde primários (CSP) em Portugal. Os utentes utilizadores são quase unânimes em referir melhor serviço, mais facilidade em marcar consulta, maior rapidez em obter renovação de receituário, melhor acesso a cuidados no próprio dia, melhor trabalho em equipa entre secretários clínicos, enfermeiros e médicos, mais acções de abertura para a comunidade, melhor organização. Os próprios profissionais de saúde em geral estão contentes (foram, aliás, eles mesmos que iniciaram este processo) e o orçamento de estado ainda poupa recursos, dado estar bem fundamentada uma redução de gastos em saúde das populações vigiadas em unidades de saúde familiar (USF) a médio-longo prazo muito superior ao aumento das remunerações dos profissionais.

Há coisas cujo benefício é menos certo. A remuneração por incentivos, por exemplo, é um principio que a meu ver podia ser aplicado a muitas áreas, é difícil um modelo mais justo do que pagar ao profissional com um salário base associado a uma bonificação pelo seu desempenho profissional (aqui avaliado por determinados indicadores). No entanto, os incentivos não são uma panaceia. Por um lado, por serem usados de forma diferente nos vários grupos profissionais na unidade. Por outro lado - e esta é a questão essencial - os próprios indicadores e a sua negociação podem tornar-se prejudiciais à prática clínica que é, afinal, do que tudo isto se trata. Há indicadores que fazem sentido, mas outros que, pelo que implicam a nível de trabalho burocrático ou de alteração de prática, acabam por se tornar contraproducentes ou totalmente errados. A título de exemplo, pode-se referir o controlo de gastos: ao longo dos anos a exigência a nível de redução de custos com prescrição de exames ou medicamentos tem sido ininterruptamente crescente e a negociação quase inexistente. Chega-se a absurdos de ter USF a diminuir média de gastos anuais por utente para a níveis 50% inferiores a outras noutra região. E qual é o critério para definir os gastos? Parece ser somente a diminuição em relação a anos anteriores, em vez de um real cálculo de necessidades de acordo com a população inscrita na USF (proporção de diabéticos, hipertensos, idosos, etc.). Outros indicadores, como por exemplo os que se relacionam com a proporção de utentes com vigilância adequada, parecem bons no sentido da efectivação dos cuidados de saúde que se pretendem, em especial numa visão de saúde pública, mas trazem consigo problemas que se verão a longo prazo. Este tipo de indicadores implica da parte da equipa da USF um esforço constante no sentido de convocar os utentes a consulta, reconvocar após falta, telefonar se falta trazer algum resultado de análise que seja importante. Ora isto traz um óbvio benefício instantâneo, mas um malefício mais tardio: os utentes habituam-se a deixar a sua vigilância depender da iniciativa da USF. Tendem, a médio-longo prazo, a desresponsabilizar-se da sua própria saúde. Não faz sentido passar cada consulta a convencer uma pessoa de que é da sua iniciativa que depende a sua saúde para depois andar a correr atrás dele porque ainda não veio medir a tensão arterial nos últimos seis meses.
Outro problema da reforma dos CSP é governo PSD/CDS. Desde que entrou em (dis)funções, este governo quase paralisou o processo, atrasando a criação de USF, a sua passagem ao modelo B (o que implica pagamento por objectivos) e agravando os problemas com a negociação de indicadores em linha com o que especifiquei acima. A vista curta de quem governa para o saldo do ano corrente ou do défice programado para o ano seguinte resulta muitas vezes em medidas que, a longo prazo, nos prejudicam a todos. Os CSP são só um exemplo, mas grave que baste.

Hoje decidi resumir esta questão porque há um novo problema nas USF que não vejo este governo a resolver de todo. As USF são formadas com base num compromisso de vigilância, uma quantidade de pessoas que se propõe a vigiar, que constituirão a sua população inscrita, dividida por listas de acordo com os médicos da unidade. A título de exemplo, uma unidade com 5 médicos propunha-se vigiar 5 listas de cerca de 1700 utentes, ou seja, 8500 pessoas no total. Ora, estas listas eram calculadas de acordo com a actividade prevista para um médico de família com uma lista "típica", sendo ele depois remunerado de forma diferente de acordo com a proporção de pessoas com necessidade de maior vigilância ou com as actividades específicas que vai cumprindo de ano para ano. A questão é que, fruto da muito necessária limpeza das listas - parece que é desta que vão mesmo levá-la a cabo - uma lista de 1700 utentes começará a responder mesmo a 1700 utentes reais, sem erros, sem utentes transferidos, mortos ou emigrados. Por outro lado, a acção deste governo tem levado ao empobrecimento da classe média e ao crescimento do desemprego que arrastam muitos doentes que faziam a sua vigilância na medicina privada para uma dependência do que lhes é oferecido no SNS. O resultado de tudo isto é que a vigilância de 1700 utentes numa USF hoje implica muito mais tempo e esforço do que quando esses valores foram estimados. É portanto essencial uma reavaliação destes números, da exigência a nível de indicadores e da remuneração correspondente. Neste momento, em vez de se exigir aos médicos de família listas de 1700 a 2000 utentes (daqui para cima dificilmente há aumento de remuneração), o limite inferior deveria ser reduzido para pelo menos 1500. Se nada se fizer, um médico que queira cumprir os objectivos que lhe são exigidos (esqueça-se a ideia de negociados, porque não há negociação de metas para além de variações marginais) terá necessariamente que reduzir a oferta de alguns tipos de serviços menos controlados pelos indicadores ou em alternativa passar a trabalhar muito mais horas, com a correspondente perda de qualidade do serviço prestado (para além da óbvia injustiça que é criar um esquema em que o profissional acaba obrigado não por decreto mas por condicionalismo a trabalhar muito mais que 40 horas, algo que, por sinal, já ocorre em muitas situações no SNS).

O problema é maior quando sabemos da forma como este governo tem gerido a relação com as instituições que representam os médicos e com a profissão em si, como comentei aqui e aqui. Valerá a pena sequer tentar que este problema seja percebido pela tutela? Infelizmente, já não tenho qualquer confiança neste governo, não acho que valha a pena tentar qualquer tipo de acordo e, aliás, tenho até receio de chamar à atenção para um qualquer problema, não vão os ministros de Passos ter mais uma ideia peregrina e piorar tudo mais um pouco. A dissonância entre o que é preciso fazer e o que se faz, entre o que se espera de um ministério e o que nos calhou, entre a realidade e a regulamentação que se vai impondo é tal que parece distopia. Fico à espera de um próximo governo que, não se verificando a hipótese terrível de um bloco central, deverá ser menos mau ou quiçá bastante melhor que o actual - pior é difícil de imaginar. Há que começar a discussão e informar as pessoas - o resto virá a seu tempo. Aguardemos.

Art (40)



Moose's Autumn

Saturday 14 June 2014

E eu testemunho.


Carlos Cortes, presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos, escreveu ontem uma acusação ao Ministério da Saúde e especialmente ao ministro Paulo Macedo no Público. Já antes o Jornal de Notícias tinha publicado uma peça sobre a reunião geral de médicos na Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, na qual estive presente, em que citou o seu presidente José Miguel Guimarães fazendo, por outras palavras, uma acusação semelhante.
Não vou repetir aqui o que outros já explicitaram, e bem. Este texto serve apenas para divulgar, junto com o meu testemunho de que, ponto por ponto, estou de acordo com as acusações e que, portanto, estarei disponível para as actividades que forem organizadas no sentido de alterar esta situação.

Há duas formas de trabalhar uma questão entre o governo e os trabalhadores, a colaboração ou o combate. A colaboração é o preferível, no entanto este ministro já mostrou não ser de confiança. Não se colabora com gente que falha consecutivamente as suas promessas, que finge que vai resolver questões apenas para adiar as situações, que ao mesmo tempo que traz algumas coisas para discussão, tenta fazer passar outras por baixo da mesa até que seja tarde de mais para intervir. Não se espera mais uma vez a ver se é desta, não se tenta um novo acordo de cavalheiros, não se faz propostas sobre a vala comum dos corpos das que morreram por falta de vontade dos governantes.
Sem relação de confiança resta aos médicos ignorar, submetendo-se, ou combater o ministério. Quando está em causa a própria existência do Sistema Nacional de Saúde, a qualidade dos serviços oferecidos, a dignidade do trabalho médico, submeter-se a isto é morrer.
Só nos resta lutar. Há muito, em boa verdade, que só nos resta lutar. Não se pode acusar as organizações de médicos de não tentar até às últimas consequências fazer política em cooperação. Foi Paulo Macedo, com as suas manobras políticas e a sua boa imprensa que não permitiu. Foi Leal da Costa, com tantos erros e a tantos níveis que nem dá para enumerar que se tornou impossível de aceitar. Foi o governo de Passos Coelho, com o seu falso pragmatismo financeiro e cegueira para a realidade que condicionaram a sua própria acção ao fracasso.

Lutemos, mas lutemos bem. A greve convocada pela FNAM é só um começo. Lutemos primeiro pelo esclarecimento das pessoas do que está em causa. Lutemos depois pelo conhecimento geral do quais são as reais condições de trabalho e remuneração dos médicos no SNS (e, já agora, dos restantes profissionais de saúde). Lutemos, por fim, para que este ministério caia, para que sejam substituídos em bloco ou, preferencialmente, que se juntem ao restante governo e em conjunto deixem Portugal em paz.